“Doutor, meu dente lateja. Parece que ele pulsa no mesmo ritmo do meu coração”. Esta é, sem dúvida, uma das queixas mais dramáticas e específicas que chegam ao consultório odontológico. Para o paciente, é uma experiência angustiante. Para o cirurgião-dentista, é um sinal clínico clássico que aponta diretamente para um processo inflamatório agudo no coração do dente: a pulpite.
Mais do que uma simples descrição da dor, a sensação pulsátil é uma janela direta para a complexa batalha fisiopatológica que ocorre dentro da câmara pulpar. Compreender o mecanismo por trás desse sintoma não apenas reforça o conhecimento do profissional, mas também aprimora a capacidade de diagnóstico diferencial e a comunicação com o paciente. Esta matéria aprofunda a ciência por trás da dor de dente que “lateja com o coração”.
A Polpa Dentária: Um Universo Confinado e Vulnerável
Para entender a inflamação, é preciso primeiro compreender o terreno onde ela ocorre. A polpa dentária é um tecido conjuntivo frouxo, ricamente vascularizado e inervado, contido dentro das paredes rígidas e inelásticas da dentina. Essa característica anatômica é o fator crucial que transforma um processo inflamatório comum em uma emergência odontológica dolorosa.
Enquanto em outras partes do corpo o inchaço (edema) resultante de uma inflamação pode se expandir nos tecidos moles circundantes, a polpa não tem para onde ir. Ela está aprisionada em uma câmara selada, uma condição que predispõe a um aumento dramático da pressão interna, com consequências diretas sobre as estruturas vasculares e nervosas.
A Fisiopatologia da Dor Pulsátil: A Cascata Inflamatória em Ação
A pulpite é a resposta da polpa a um agente agressor, sendo a cárie bacteriana a causa mais comum, seguida por traumas, preparos cavitários extensos ou mesmo estímulos térmicos e químicos. Quando esses agressores atingem a polpa, uma complexa cascata inflamatória é deflagrada:
Liberação de Mediadores Químicos:
Em resposta à lesão, células de defesa liberam potentes mediadores inflamatórios, como prostaglandinas, bradicinina e histamina.Vasodilatação e Aumento da Permeabilidade:
Esses mediadores provocam a dilatação dos vasos sanguíneos (arteríolas e vênulas) e aumentam a permeabilidade dos capilares. O objetivo biológico é nobre: aumentar o fluxo de sangue para a área, trazendo mais células de defesa e oxigênio para combater a agressão.O Conflito: Pressão vs. Espaço:
O aumento do fluxo sanguíneo e o extravasamento de plasma (exsudato inflamatório) para o tecido conjuntivo levam a um edema. Em um tecido mole, isso seria apenas um inchaço. Dentro da câmara pulpar, esse aumento de volume eleva drasticamente a pressão intrapulpar.A Sincronia com o Coração:
O fluxo sanguíneo arterial não é contínuo; ele é pulsátil, impulsionado por cada batimento cardíaco (sístole). Cada sístole envia uma nova onda de sangue para a polpa já congestionada. Essa onda de pressão arterial se sobrepõe à altíssima pressão intrapulpar já estabelecida, causando um pico momentâneo de compressão sobre as fibras nervosas (nociceptores) presentes na polpa. O cérebro interpreta esses picos de pressão rítmicos e dolorosos como uma dor que “lateja”, perfeitamente sincronizada com o pulso do paciente.
Essencialmente, o dente se transforma em um compartimento de alta pressão, onde cada batimento cardíaco agrava a compressão nervosa, gerando a clássica dor pulsátil.
O Diagnóstico Diferencial: Da Reversibilidade à Necrose
A dor pulsátil é um sinal patognomônico da pulpite irreversível. É fundamental que o profissional diferencie os estágios da inflamação pulpar para um correto plano de tratamento.
Pulpite Reversível:
Caracteriza-se por uma dor aguda, provocada (geralmente por frio ou doces) e de curta duração, que cessa imediatamente após a remoção do estímulo. Neste estágio, o processo inflamatório é leve e a polpa tem capacidade de se recuperar uma vez que o agente agressor (ex: uma cárie inicial) seja removido. A dor não é espontânea nem pulsátil.Pulpite Irreversível:
Aqui, a inflamação é severa e o dano tecidual comprometeu a capacidade de recuperação da polpa. A dor torna-se espontânea, exacerbada pelo calor, contínua e, classicamente, pulsátil. O paciente frequentemente relata que a dor piora à noite, ao se deitar, devido ao aumento da pressão sanguínea na cabeça. O tratamento de eleição é a terapia endodôntica.Necrose Pulpar:
Se não tratada, a pulpite irreversível evolui para a necrose. A pressão intrapulpar se torna tão alta que colapsa os vasos sanguíneos, cortando o suprimento de sangue e levando à morte do tecido pulpar. Paradoxalmente, a dor pulsátil pode cessar, pois as fibras nervosas morrem. No entanto, a infecção agora avança para a região periapical, podendo levar a abcessos e outras complicações graves.
Conclusão: Da Queixa do Paciente à Certeza Diagnóstica
A dor de dente que lateja com o coração é mais do que uma metáfora; é a descrição precisa de um evento hemodinâmico ocorrendo em um espaço confinado. Para o clínico, reconhecer e entender a fisiopatologia por trás desse sintoma é crucial. Isso permite um diagnóstico mais seguro, diferenciando com clareza uma condição reversível de uma irreversível, e fundamenta a indicação inequívoca do tratamento endodôntico.
Além disso, utilizar essa explicação para educar o paciente sobre por que seu dente dói dessa maneira específica pode aumentar a compreensão e a aceitação do tratamento proposto. A dor pulsátil é, portanto, um poderoso lembrete da intrincada e fascinante biologia que rege a saúde e a doença no universo da Odontologia.
Fonte: LOPES, Hélio Pereira; SIQUEIRA JÚNIOR, José Freitas. Endodontia: biologia e técnica. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2020.
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